Oscar 2021 | ‘Judas e o Messias Negro’: Após décadas, os bastidores do assassinato de Hampton finalmente é retratado nos cinemas

A negritude se manteve longe das telonas por anos e anos e anos, infelizmente. Para se ter uma ideia, no Oscar de 2016, não muito tempo atrás, atores e atrizes negros e negras se mantinham ausentes da lista de indicados pelo segundo ano consecutivo. Mas então, depois de muita crítica na indústria e após uma espera gigantesca, somada à uma ajuda ferrenha do movimento Black Lives Matter, 2020 veio para quebrar recordes. Além de trazer o Emmy com o maior número de nomeações para atrizes e atores negros e pardos, o ano passado também marcou lançamentos de produções importantíssimas no cinema negro, tais como ‘Ma Rainey’s Black Bottom’, ‘Sylvie’s Love’, ‘Soul’, ‘One Night in Miami’ e algumas outras, todas muito bem conceituadas, com excelentes críticas dos maiores cineastas.

Neste ano não é diferente, estamos ainda no início de março e já temos uma rara e mega adição ao black cinema: ‘Judas and the Black Messiah’, lançado aqui no Brasil na última semana e que concede a Daniel Kaluuya, por sua notável performance, o Globo de Ouro de “Melhor Ator Coadjuvante”, além de uma nomeação, de mesma categoria, ao Critics’ Choice Awards, premiação que acontece no próximo domingo.

Abaixo você pode acompanhar o exato momento em que o ator foi premiado e como até os famosos podem esquecer de desativar o ‘mute’ do Zoom.

“Os Panteras Negras são a maior ameaça à nossa segurança nacional. Mais do que os chineses, ainda mais do que os russos. Nosso programa de contra-inteligência deve evitar a ascensão de um ‘Messias Negro’ do meio deles’”

É com essa fala de um dos agentes do FBI que uma das grandes apostas nesta temporada de premiações inicia-se. O novo drama da Warner Bros. Pictures, entitulado ‘Judas and The Black Messiah’ (traduzido para ‘Judas e o Messias Negro’ aqui no Brasil), é baseado em fatos reais e acompanha os bastidores da traição de Bill O’Neal (protagonizado por LaKeith Stanfield) para com o ativista Fred Hampton (personagem de Daniel Kaluuya), líder do movimento Black Panthers e muito conhecido pelos seus proeminentes discursos anti racistas e anticapitalistas (em uma cena do drama, ele é intitulado como ‘O grande orador de West Side’).

Nos apresentando um mundo cheio de conflitos, no pós assassinato do reverendo e ativista Martin Luther King, o diretor Shaka King traz á tela uma história que não é tão conhecida quanto a de Martin, mas que também impactou toda a América em 1969, o assassinato de Fred Hampton, sendo que a morte dos dois mais importantes ativistas da história do movimento anti-racista se deu em um intervalo de apenas um ano.

A trama começa centrando-se no homem que tornou este crime possível: Bill O’Neal. Capturado pelo FBI, em uma tentativa de roubo a carro, Bill se depara à uma situação um tanto desesperançosa, com a possibilidade de permanecer seis anos e seis meses atrás das grades. Pelo menos, até o agente Roy Mitchell (Jesse Plemons) lhe fazer uma proposta indecorosa: se livrar da pena e, em troca, servir ao FBI como infiltrado no movimento Black Panthers, como um dos ‘bros’, e assim construir uma amizade íntima com o líder do movimento, Fred Hampton. Dessa forma, tendo contato direto á informações privilegiadas e ultrassecretas e as repassando ao Departamento Policial de Chicago.

Tal como Judas, O’Neil aceita a proposta e se deixa levar pelo vislumbre da liberdade e do verde das cédulas de dólares que recebia a cada informação que cedia ao FBI. Assim sendo, sem muita demora e esforço, o infiltrado se torna um dos mais próximos do diretor dos Panteras Negras. A amizade entre os dois era tão íntima que o próprio líder do partido zombava de Bill em diversos momentos, como na cena do carro, onde Bill O’Neal está a dirigir e Fred começa a gargalhar e fazer piada do modo como os ‘bros’ e ‘sisters’ do movimento o chamam, de “Wild Bill” (“Bill Selvagem”, em português).

Estas cenas de risos e piadas foram muito bem empregadas no drama, pois além de ressaltar a harmonia e o lado “família” dos Black Panthers (não é à toa que eles se chamam de irmãos), também são momentos que servem como um lampejo de luz em meio à escuridão, suavizando a trama antes que a intensidade impere de uma vez por todas na história. Os momentos afetuosos entre o ativista Hampton e sua namorada Débora Johnson (Dominique Fishback), que esbanjam a química presente entre os dois atores, também cooperam para este equilíbrio entre leveza e intensidade.

A proximidade de O’Neal (o Judas) com Fred (o Messias) fez com que o infiltrado, em meses, galgasse o posto de Chefe de Segurança do ramo de Chicago. Ao decorrer de todo esse processo, o agente Mitchell, do FBI, pressionava continuamente Bill O’Neal, o ameaçando, mas também o tratando com uma certa consideração fingida, atitude esta que acaba por ‘engabelar’ Bill, que se sente prestigiado, já que jamais esperava receber agradecimentos e elogios de um policial branco.

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O’Neal (Stanfield) aceitando o acordo do agente Mitchell (Jesse Plemons)

Por outro lado, no desenrolar da trama, presenciamos uma certa mudança de comportamento em Bill. Ele passa a não ter que fingir, ele se perde no disfarce e realmente começa a admirar “seu líder”. O protagonista cria um fascínio e um moderado encanto pelo Movimento Black Panther Party (este é o nome original do movimento, que mais tarde veio a se tornar apenas Black Panthers) e as ações que eles realizavam, tais como programas comunitários de saúde e alimentação aos mais necessitados, sendo estes de maioria crianças, além de se comprometerem com a missão de garantir escolaridade nas comunidades negras. À medida em que ele se envolve cada vez mais com os Black Panthers, mais o desejo de fazer parte de algo maior e ser parte da mudança aumentam em si e tornam essa disparidade ainda mais evidente no personagem, ao ponto de o agente sentir a necessidade de o alertar sobre isso:

“Isso… que eu e você estamos fazendo, é o outro lado da moeda. Não se deixe enganar por Hampton. O objetivo deles é semear o ódio e instaurar o terror. Claro e simples!”

O fato é que os dois lados, conforme o que o filme retrata, sempre coexistiram em Bill. Era uma espécie de Yin Yang, onde o Bill traidor e o Bill revolucionário se conflituavam, pelo menos até o ‘ato final’.

Bill O’Neal é o protagonista, mas nada já criado no cinema se compara ao detalhismo que Shaka dedicou a Hampton aqui. Inclusive, Fred Hampton é citado em um outro filme muito potente nesta temporada, ‘Os 7 de Chicago’, drama de Aaron Sorkin para a plataforma de streaming da Netflix, mas o protagonismo de Fred exibido em ‘Judas and The Black Messiah’, empregado de uma forma tão carismática e potente, pode ser considerado como uma estreia nos cinemas, dado o fato de que sua história foi sempre ignorada ou minimizada pelos diretores e roteiristas de Hollywood.

Sobre as histórias de personalidades negras e como elas foram encobertas e recontadas de uma forma superficial por anos e como mudar isso na indústria cinematográfica, a atriz Andra Day, que também está sendo bastante cotada nesta temporada de premiações por seu papel em ‘Estados Unidos versus Billie Hollyday’ e pelo qual ganhou o Globo de Ouro na categoria de “Melhor Atriz de Um Filme Dramático” no último fim de semana, se pronunciou ao The Hollywood Reporter, dizendo o seguinte:

“Temos que abrir o topo dessas coisas e temos que dizer a verdade sobre eles e compreender o alcance de certos grupos de pessoas, pessoas de cor, por que o alcance de sua dor, o alcance de suas histórias, foram minimizados ou recontados de uma forma simplista. Temos que recontar essas histórias SIM, mas recontá-las através da verdade, algumas das verdades cruéis e feias. Temos que dizer: ‘OK (…) precisamos conhecer essas verdades para que possamos realmente seguir em frente e não repeti-las’”.

A desenvoltura de Kaluuya no papel foi a ‘cereja do bolo’. Seus monólogos espessos, mas ao mesmo tempo envolventes, não são fáceis de se pronunciar, com toda certeza, mas isto não é um problema para o ator, que encara o desafio com destreza, até mesmo personificando o sotaque e trejeitos do ativista.

[Agora entendemos o motivo dele ter perdido totalmente a voz no fim de um dia de gravações e precisar de um dia inteiro de descanso, como ele mesmo admitiu em entrevista para a Variety.]

Também companheiros de cena no terror racial ‘Corra!’ (um dos filmes mais indicados no Oscar de 2018 e que foi dirigido por Jordan Peele), Kaluuya e LaKeith brilham novamente e em cada cena em que co-estrelam aqui, interpretando os antagonismos de seus respectivos personagens, divergencias estas que se apresentam até por meio das expressões faciais. Enquanto Kaluuya tende a retratar seu papel com um olhar mais meigo e expressões mais pacíficas, por estar jogando um ativista que é delicado no trato com as pessoas e, em certo sentido, é também um tanto tímido fora dos palcos e da multidão, em contrapartida LaKeith Stanfield encarna o nervosismo e imediatismo de Bill O’Neal, interpretando de maneira muito bem sucedida seu personagem confuso e desajustado. Ambos possuem uma presença de tela fenomenal, que quando somada ganham ainda mais força.

O aspecto vintage da fotografia, o zoom que coincide com os movimentos bruscos dos personagens, os closes intimistas, que quase te fazem sentir os momentos de desespero, de angústia, de coragem e de paixão no olhar de Bill e Fred, assim como nos olhares e expressões dos coadjuvantes, além dos ângulos que praticamente convidam o telespectador a fazer parte dos diálogos, são características que, sem sombra de dúvida, içam a qualidade do projeto.

Por fim e não menos importante, já que nada em um filme é possivel sem ele, o que falar desse roteiro?! Ele funciona de uma maneira um tanto investigativa e nos revela os dramas dos dois personagens por camadas, como um quebra-cabeça que vai se montando aos poucos, cada peça contendo uma informação importante, até conseguirmos um plano completo, fator responsável por prender nossa atenção até o fim. A excentricidade do enquadramento de abordagem que King utiliza no script nos apresenta uma verdadeira ‘magnum opus’ em um drama que poucos conseguiriam adaptar com tal proeza.

Ah, mais uma coisa: ao assistir, te desafio a contar o tanto de vezes em que a palavra ‘porco’ ou ‘porcos’ é pronunciada. Caso você consiga essa façanha, nos conte nos comentários, adoraríamos saber.

O lançamento de ‘Judas e o Messias Negro’ na plataforma de streaming HBOGO ainda não foi confirmado. O drama pode ser assistido em cinemas brasileiros selecionados com restrição de assentos e seguindo as orientações da OMS contra a disseminação do Covid-19. O filme não recebe dublagem.

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