Oscar 2021 | ‘Nomadland’: Uma visão misantrópica da impiedosa aposentadoria americana


Chloé Zhao põe em xeque o capitalismo selvagem, em um drama sensitivo que retrata a exploração trabalhista na terceira idade e os lapsos da hedionda aposentadoria estadunidense


Uma rota cheia de obstáculos, solidão, subempregos, angústias, doenças, pensamentos suicidas e, como linha de chegada, a inevitável morte, isso é Nomadland

“O médico disse que eu tenho câncer de pulmão, Carcinoma de células pequenas. Ele disse que se espalhou para o meu cérebro, disse que eu só tenho sete ou oito meses de vida. Eu vou viajar de volta ao Alasca, tenho incríveis memórias lá. Independente de tudo, tenho um livro chamado “The Last Exit”, escrito pelo Dr. Kevorkian, algumas pessoas o chamam de ‘doutor da morte’. O livro apresenta muitas maneiras de acabar com a vida, como uma receita secreta.”

Esta é apenas uma entre as incontáveis e impactantes falas que podemos não apenas escutar, como também sentir, no novo drama de Chloé Zhao, distribuido pela Searchlight Pictures e produzido pela Highwayman Hear/Say Cor Cordium.

A adaptação do renomado livro de não-ficção de 2017, da jornalista americana Jessica Bruder, finalmente chegou às telonas e não tinha como ser de maneira mais sublime. A obra literária homônima Nomadland, e que embasa o filme dramático de mesmo nome, nos apresenta um aglomerado de histórias, que traz em pauta americanos da terceira idade, os quais adotam estilos de vida transitórios após a Grande Recessão, viajando assim pelos Estados Unidos em busca de trabalho sazonal e transformando seus próprios veículos em suas moradias. Esse grupo de indivíduos passou a ser classificado como “nômades contemporâneos” e se tornou uma espécie de fenômeno na América do Norte, de tão recorrente. Como o The Guardian os caracteriza, são “lutadores de classe média de cabelos grisalhos reduzidos à pobreza que não podem se aposentar, mas também não podem trabalhar enquanto mantêm uma casa”.

Na época, o livro foi muito bem recebido pelos leitores estadunidenses e foi avaliado como uma obra perspicaz, de impacto e que retrata o “fim da trilha” de inúmeros americanos, mas já está na hora de transformar os verbos em cinema e assim impactar ainda mais pessoas.

Para mim e para 95% da crítica cinematográfica norte-americana, a adaptação honra o trabalho de Bruder e, se não eleva o padrão, o mantém — recebendo, até o momento, inúmeros e renomados prêmios. 

Entre sua lista quase que infinita de estatuetas, o drama Nomadland recebeu o Leão de Ouro (2020), o Gotham Independent Film Awards (2021) por Melhor Filme, o Critic’s Choice Awards (neste mês) por melhor direção, o Satellite Award (2021) na mesma categoria e a lista se estende.

Tal sucesso não é de se arregalar os olhos, se levarmos em conta a responsável por esta adaptação: Chloé Zhao. Seu primeiro filme, Songs My Brothers Taught Me (2015), estreou no Festival Sundance de Cinema com uma certa notoriedade, mas foi em seu segundo longa-metragem, The Rider (2017), que a diretora e roteirista chamou a atenção da banca e do público. Na época, The Rider foi bastante aclamado pela crítica, sendo até mesmo indicado ao Independent Spirit Award, nas categorias de Melhor Filme e Melhor Diretor. Agora, com Nomadland (2020), Zhao faz história e se torna a segunda diretora a receber o Globo de Ouro por seu cintilante, socialmente relevante, e fenomenal trabalho, mesmo em uma carreira ainda tão curta na direção.

O longa, que tem sido catapultado, desde o segundo semestre do ano passado, ao Oscar — premiação que revelou seus nomeados nesta manhã, entre os quais Nomadland foi indicado por melhor edição, melhor cinematografia, melhor atriz, melhor direção e melhor filme, ooof —  nos mostra o trabalho mais polido de toda a carreira da atriz Frances McDormand, a qual conta com um ‘currículo’ recheadíssimo de estatuetas:  dois Oscars, dois Primetime Emmy Awards e um Tony Award, tornando-a uma das poucas artistas a conquistar a “Tríplice Coroa da Atuação“. 

2018 Oscars: Frances McDormand's Oscar Was Stolen! - YouTube

Então você leitor me questiona: como uma atriz tão renomada pode chegar aos 60, de maneira tão estupenda, e ainda assim nos surpreender? Eu digo que é sim possível e Frances nos prova isso aqui. A veterana entrega aspereza, paixão, tristeza e esperança em sua performance. Afinal de contas, a atriz realmente se apaixonou pelo projeto e ‘fez das tripas coração’ para que este se realizasse da melhor maneira possível. Não digo isso só pela vaporosa atuação dela, mas sim por todo o processo pré-gravação. McDormand foi a que comprou os direitos de adaptação e propôs a ideia para a diretora. Em outras palavras, a adaptação de Nomadland é fruto da mente de Frances. Sem ela, talvez demorasse uns quatro, cinco anos, ou até mais para que vislumbrássemos algo do tipo.

A personagem de McDormand se chama Fern, a protagonista da trama — uma viúva e ex-professora substituta em Empire, Nevada — que perde seu emprego fixo e, assim, acaba por não conseguir se aposentar, sendo enxotada de sua “própria” casa. No auge da crise de 2008, em um contexto que é o cúmulo da desesperança, a protagonista é forçada a juntar seus pertences em uma van surrada e partir rumo ao desconhecido, algo que ela aceita com uma mísera auto-piedade e surpreendente prontidão. Pouco tempo depois, na busca por um emprego qualquer, a personagem acaba por descobrir outros indivíduos que se encontram em uma situação bastante símil a dela, marginalizados e transformados em mão de obra barata pela Amazon, submetidos a contratos com duração de poucos dias ou semanas. Vale salientar que, nestas cenas, Zhao teve permissão para filmar dentro de uma das misteriosas catedrais da indústria de serviços da Amazon, fator este que me deixou um tanto perplexa.

A decisão criativa e de abordagem, centrada em uma única personagem, é o que dita o sucesso do filme. Chloé Zhao situa todos os relatos contidos no livro e personifica em Fern, simplificando a compreensão do telespectador. Dessa forma, não precisamos despender energia no acompanhar de inúmeros personagens e de suas trajetórias diversificadas e simultâneas. É claro que há outros — não muitos — personagens no plano de fundo, os quais possuem sua própria relevância na trama, mas o centro de tudo é Fern, é por meio dela que vemos as dores de uma vida custosa, em busca de subempregos e de uma sobrevivência diária na estrada. É por causa dela e de suas vivências que nos simpatizamos com estes indivíduos e, por vezes, criamos até mesmo uma certa revolta interior contra o sistema trabalhista e de aposentadoria norte-americano, do qual Fern se tornou uma entre inúmeras vítima.

Variety - PressReader

Um aspecto que pode deixar muitos telespectadores um tanto surpresos ou, até mesmo decepcionados, é o fato de o filme não possuir um direcionamento político. No entanto, isso tem um motivo que se torna bastante claro para aqueles que já leram a obra de Bruder, já que a autora do livro detalha que a infeliz situação deste grupo de indivíduos se dá à classe política como um todo, devido a falta de reformas jurídicas no transcorrer de décadas e mais décadas, que tornam praticamente impossível uma aposentadoria digna ou, ao menos, básica para grupos de classe baixa. Por este motivo, não seria justo delinear um único partido ou governo culpado por esta crise, porque este não existe. Foram anos e anos de desgoverno estadunidense.

Mesmo sentindo na pele as adversidades, angústias e desesperos, o filme também nos mostra feixes de luz e serenidade neste modo de vida. Sem as algemas do capitalismo, Fern prova a liberdade por completo, somada à união e alento da comunidade anônima, que se faz presente em diversos momentos.

Review: A different kind of American odyssey in 'Nomadland' | Entertainment  | journalstar.com

A trilha sonora da obra é outra jóia que é impossível ignorar. Com inúmeras críticas louváveis, as composições sensíveis e comoventes do compositor italiano Ludovico Einaudi nos envolve na história. Traz emoção, calmaria, desespero, e todos os sentimentos possíveis, em sonoras que se iniciam sutilmente e assim se desenvolvem até alcançar o seu apogeu. (clique na imagem abaixo para ouvir)

O processo criativo por trás das composições musicais é, no mínimo, curioso. A música foi inspirada nas caminhadas de Einaudi nos Alpes Italianos. De acordo com as notas de imprensa do filme, o músico seguiu o mesmo caminho por sete dias, vivenciando em cada dia “às diferentes emoções e estímulos que experimentou enquanto negociava as mudanças de luz, temperatura, vida selvagem e condições climáticas“. Cada um dos sete álbuns, intitulados “Day One” (dia 1) a “Day Seven” (dia 7), era uma canção baseada nessas diferentes emoções. 

Infelizmente, não veremos a trilha sonora de Nomadland concorrendo ao Oscar, já que as músicas tocadas no filme foram criadas à parte, antes mesmo do fim da produção do drama, ou seja, elas não foram compostas propriamente para a obra. Sobre as canções, Zhao disse ter reaproveitado faixas de dois dias para seu filme e contou que o fator responsável por atraí-la às canções de Ludovico foi a inspiração da natureza que o compositor faz questão de inserir em seu processo criativo.

A filmografia, por Joshua James Richards, também nos traz sua beleza e peculiaridade (não é à toa que foi um dos nomeados pela Academia), presente nas cores radiantes do céu, nos pores do sol, no ambiente desértico que contrói o pano de fundo de quase todo o filme, além dos closes nas faces dos personagens, que trazem em evidência as rulgas, marcas e olhares cansados e vagos que refletem o pesar de décadas de puro labor.

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Uma última curiosidade, que se torna a mais intrigante entre todas: quase todos os coadjuvantes são realmente ‘nomâdes contemporâneos’ e não atores. Suas performances são tão realistas porque não são ‘fingimentos’ ou ‘personas’, são eles sendo eles. Talvez seja este o motivo principal que nos dá, ao assistirmos, a sensação de um documentário e não de um filme.


Nomadland foi lançado em 29 de janeiro nos cinemas drive-ins estadunidenses (como você pode ver no vídeo abaixo), estando disponível também na plataforma de streaming americana Hulu. Aqui no Brasil, como praxe, já que somos quase sempre os últimos a conferir filmes indies internacionais, o drama será lançado nos cinemas locais apenas daqui um mês, em 15 de abril de 2021, podendo ainda sofrer alterações devido aos decretos governamentais e preventivos contra a pandemia da Covid-19. 

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