Crítica | Liga da Justiça de Zack Snyder (Snyder Cut)

Caro leitor, goste-se ou não de Zack Snyder, uma coisa é mais do que incontestável, como bem é apontado por aí: ele não pode, como ‘deve’ ser encarado como um autor – e basta comparar sua interpretação de “Liga da Justiça” à de Joss Whedon para constatar isto, o que mais do que justifica a inclusão de seu nome no título do filme.

De início, soa pessoalmente curioso como justo o próprio Zack Snyder, figura controversa no cinema (do tipo, ame ou odeie – mas fato é que não são meras opiniões daqui ou dali que tiram o mérito ou a autoria de um cineasta) conseguiu construir sua marca e, logo, até ganhar uma alcunha tão individual-autoral a ponto de ninguém chamar o filme pelo nome que tem. E, de fato, não é para menos isso, mas não me parece nada curioso.

Afinal, definitivamente, temos outra obra, tanto em escala, quanto em tecnicidade, em poder narrativo, quanto em ação objetiva, no sentido que digo quanto àquela – para ser no mínimo delicado – baboseira completa, que mais parece uma brincadeira de criança que, com o perdão da palavra, uma ‘porqueira’ inócua, como o filme de 2017. 

Mas como, Luca? Ora, já vimos esse filme e não valeu a pena… nem um pouco”. 

Não, não vimos. Mentira. O filme nasce na sala de edição. Se ela foi refeita, tenha certeza de que, apesar de quaisquer semelhanças, é um outro filme.

Vejamos, vale salientar (até para quem não sabe disso), um ‘assembly cut’ é um corte extremamente bruto de um filme que vem mesmo antes do primeiro corte de um projeto (no caso, não finalizado, claro, pois sequer chegou à pós-produção). Contendo basicamente todo o material filmado, é a partir dele que um cineasta pode lapidar o seu trabalho em campo, filmado em set, cortando o que não faz parte da narrativa, repetições desnecessárias e, até se tiver bastante dinheiro, verificando que precisa de mais material. Com suas estrondosas quatro horas e uns dois minutos de duração, “Liga da Justiça de Zack Snyder” (ok, sim, chamei pelo nome desta vez. Rsrs) é algo que poderia ser um mero ‘assembly cut’ lançado ao público, como vinha se falando muito por aí. Entretanto, essa nova montagem do ‘filmeco’ (sério, diria que não há porque ser delicado, sempre que eu me referir à versão anterior, será de forma negativa e com ao menos um bocado de merecido sarcasmo) lançado lá em 2017, enfim, consegue se transformar em algo próprio.

Primeiramente, precisamos voltar um pouco na história para que possamos entender o que é o “Snyder Cut” (tido por muitos como infame) e a sua importância. Há alguns anos, quando o filme da famigerada Liga da Justiça estava ainda em produção, Zack Snyder, o diretor do filme e a principal mente criativa por trás da maioria dos projetos do Universo Cinematográfico da DC, sofreu uma grande perda, sua filha, Autumn, havia se suicidado. Snyder, desoladíssimo, decidiu colocar todos os seus projetos de lado em seu momento de luto, e o então filme da Liga da Justiça acabou sendo passado para as mãos de Joss Whedon (diretor dos dois primeiros “Vingadores”), que mudou completamente a forma que Snyder tinha dado ao filme. Logo, as consequências diretas disso, vimos no resultado catastrófico do filme (em bilheteria também foi desastre, mas o pior foi o rechaçamento por parte da crítica e da maior parte do público, incluindo, sim, deste que vos escreve).

Claro que, como seria de se esperar, com o forte desapontamento dos fãs com o material que foi entregue ao mundo por Joss Whedon, surgiu na interweb a hashtag Release the Snydercut”, em tradução livre: “Solte o corte de Snyder”, um grande e poderoso apelo dos milhões de fãs ao redor do mundo que foi cada vez mais ganhando proporção e visibilidade. Três anos depois, em 2020, o “Snyder Cut” foi finalmente confirmado pelo estúdio da Warner Bros., com a estimativa de lançamento para o ano de 2021.

E, sim, o “Snyder Cut”, por sua vez, é um grande exemplo do que acontece quando um comitê de internet (já que estamos vivendo oficialmente a era dos fãs) decide e pasmemos!, conseguem chegar até ao posto de ‘produtores’ não-oficiais dos filmes. Mas aqui não há maiores interesses corporativos em lucrar (óbvio que não deixará de acontecer, estamos falando de uma indústria capitalista em si, e algum dinheiro será angariado e movimentado), mas o interessa de voz de um artista anteriormente suprimido, agora atendido e realizado.

O ponto nisso, no que digo, é que, como dito em uma recente, longa e emocionante entrevista à Vanity Fair, o próprio Snyder revelou que não recebeu salário algum por trabalhar no projeto “Snyder Cut”. 

Não estou sendo pago,” disse à Vanity Fair.Não queria ficar em dívida com ninguém, e isso me permitiu manter meus poderes de negociação com essas pessoas muito fortes.”, ele disse.

Ao que parece ainda, os fundos arrecadados (ao menos boa parte deles) com o (re)lançamento agora irá para instituições carentes, como também de ajuda psicológica e de combate ao suicídio.

Zack Snyder, Gal Gadot e Ben Affleck em ‘Liga da Justiça de 2017 | Reprodução: Warner Bros. Pictures

É fato que Snyder tem uma visão muito própria dos heróis (no caso, os da DC – que são os que ele têm oportunidade de usar). Enquanto a Marvel Studios (dentro da dinâmica do MCU – Marvel Cinematic Universe) retrata seus heróis – mesmo os mais extravagantes – de um ponto de vista extremamente humano, o cineasta enxerga a Liga da Justiça como grandes deuses modernos, extraindo fortes influências das mais diversas fontes, indo desde a mitologia greco-romana, passando pelas lendas arturianas, pelo legendarium de Tolkien e pelo cristianismo, sempre com um grau quase absoluto de solenidade, algo presente nos seus filmes anteriores da saga – “O Homem de Aço” e “Batman vs. Superman – A Origem da Justiça”. Se funciona ou não, beleza, até é indiscutível, mas já é outra história. Deixo para cada espectador examinar à sua maneira.

Aqui, Snyder tem a chance de brincar (sim, estou usando essa palavra, pois ele está livre em seu playground, uma vez que ele tem controle total deste projeto agora, desde o material bruto da pós-produção do longa ‘bulhufa’ de 2017) com o panteão inteiro e, ao contrário de “Batman vs. Superman”, de fato mostrar suas diferentes personalidades e habilidades para colocá-los para interagir, o que é sempre a grande atração nos filmes de equipe. Nos filmes de herói, nem se fala.

 Até, claro, nas obras audiovisuais, da concorrente, o gozo do público é ver seus heróis atuando em conjunto, trocando piadas, farpas e tiradas, mas unidos para um objeto em comum: derrotar o grande inimigo para ‘salvar a existência do bem maior no mundo’.

Genial como o “Snyder Cut” aqui (pronto, voltei a chamar assim) não deixa de acabar sendo um interessante comentário sobre a própria efemeridade do próprio gênero (sim, fato é que, nos últimos vinte anos, tamanho foi o fenômeno dos filmes de heróis para se firmarem no imaginário como tal: um gênero só, em específico). Tanto no sentido de uma ação direta que, ao menos em tese, essencialmente não leva a nada (vencer o invencível, a luta como uma convenção que precisa ser perdurada), como na literal união dos heróis que começa relutante no início por parte de algumas figuras, mas que, no fim, compreende o real escopo da ameaça e dos perigos em jogo para… bem, você sabe. Tão bem quanto eu. ‘Salvar, salvar’. Lutar. Lutar.

É um filme sobre o método desta vez. E por isso mesmo é o mais objetivo da DC (se o considerarmos assim) até hoje. Ele isola a ação dentro de um intuito muito claro e assume a missão como uma meta da narrativa (ou como, teoricamente uma ‘meta-narrativa’, quase dentro da dinâmica semelhante à expressão chamada ‘meta-humanos’). Não existe mais burocracia. É tudo muito facilmente assimilável e o embarque do espectador não se dá por elementos subentendidos (o fanservice), mas por um trajeto simples (embora até tenha complexidade em seus desdobramentos) que precisa ser percorrido.

Diversos são os textos estudando as sutilezas nos filmes de super-heróis desde o início dos anos 2000, com o original “Homem-Aranha” (2002) do Sam Raimi, em que chamam muita atenção às diferenças entre a origens do personagem titular e outros protagonistas e antagonistas famosos das HQs, na forma como o filme se articula no drama, mas é interessante notar que mesmo diante de certos de personagens com inúmeras variações, referências homenagens, semelhantes e cópias e mais cópias ainda é possível trabalhar suas narrativas com originalidade.

Por exemplo, os filmes do Batman do Tim Burton eram sobre como o trauma do Bruce Wayne fez ele perceber a brutalidade do mundo e aceitar que elas existem para lutar contra elas, criando esse mundo gótico assustador a ser enfrentado. Já os do Christopher Nolan (bem ou mal, eu prefiro considerar como ‘por mal’ mesmo) são sobre como esse trauma justifica o apreço do herói pelas estruturas, daí o imenso conservadorismo da sua trilogia. E aqui o Homem-Morcego é só um brutamontes velho que não salva ninguém (a não ser os funcionários da sua empresa no início durante a batalha de Metrópolis), ancorado por um Alfred velho e ranzinza (Jeremy Irons em grande estilo, em sua ótima forma), como que irritado porque seu chefe queria destruir uma divindade, que é o conceito que reinava o seu mundo, em “A Origem da Justiça”.

Para ser sincero, não posso dizer que, além de um mero interesse passageiro por HQs, sou e sempre fui um grande fã disso. Não faz sentido negar. Para que se tenha uma noção, só, parava de ler os gibis dos universos deles quando fosse ler “Turma da Mônica”. Para mim, a Santíssima Trindade que cristalizou meu amor pelos super-heróis e até pelo cinema posteriormente foi o Homem-Aranha e o Homem de Ferro, na Marvel, e na DC Comics, primordialmente o próprio Batman. Eles foram os que mais me fizeram sair de casa para assistir muitos filmes e para ir às bancas de jornais comprar novas edições de gibis. Ao longo desses meus dezenove anos, juntei algumas delas. Além dos X-Men, do Quarteto Fantástico e dos Vingadores na Marvel, e na DC, a nossa Liga da Justiça. Também era algo que devia costumar ter alcance aos arquétipos dos subúrbios. Quando se está ciente de que está alcançando arquétipos que se transformam em clichês, especialmente em filmes sobre adolescência e amadurecimento, entra-se no terreno dos quadrinhos. 

A propósito, o trabalho mitológico de Joseph Campbell é notório. E aqui é um tanto quanto preciso. A influência dele nos filmes de Hollywood é indiscutível, contudo ele deve ser abraçado no sentido que aprendemos a forma, e depois aprendemos a subverter a fórmula.

Campbell distinguia as duas figuras públicas: o herói arquetípico (a figura pública antiga) e a celebridade (a figura pública moderna). Enquanto a celebridade se populariza por viver para si mesma, o herói assim se tornava por viver ajudando a própria comunidade. Todo super-herói precisa atravessar alguma via crucis. Como Batman, como Hércules. É como diria o líder pacifista indiano, Mahatma Gandhi, que “quanto maior nosso sacrifício, maior será nossa conquista. ”

E como Marcelo Hessel  bem lançou a pergunta, em um de seus muito textos, “Será que os super-heróis são, de fato, todos iguais?”

Sei que tal questionamento passa pela cabeça de muita gente.

Claro, há as distinções entre os grandes vigilantes atormentados (como o Morcego, Cavaleiro das Trevas), entre os seres místicos onipotentes que nos servem de ícones, entre os super-heróis que encontram nos próprios poderes soluções de autoestima. Porém, a distinção mais dramática, mais barulhenta — aquela que movimenta a indústria da nerdice há gerações, causando o maior estrondo —, não é tão simples de definir, porque exige uma generalização: os super-heróis da DC são tão diferentes assim dos super-heróis da Marvel?

Eis a questão!

A noção de que os super-heróis projetam ideais de perfeição, como se fossem ídolos gregos — uma noção que nem os cineastas da Warner/DC, muito menos os da Disney/Marvel inventaram, e sim os criadores dos personagens de muito antes — está no coração das HQs norte-americanas mais antigas e também nos filmes mais caça-níqueis da atualidade, que balançam Hollywood todo ano desde algum tempo atrás. São produzidos a rodo até hoje.

Ray Fischer como Cyborg em ‘Liga da Justiça de Zack Snyder’ | Reprodução: Warner Bros. Pictures

A relação material que se constrói a partir de meros objetos afetivos (como os do Ciborgue – personagem de Ray Fisher – e a sua relação com a Caixa Materna, como os objetos que o ligam a seus pais) propõem uma relação poética com a condição ali a qual os próprios personagens estão presos. Para além, é a mesma condição que, mesmo partindo do material em certo plano, não deixa de ser afetivo, como nas cenas do Flash e seu desejo de pertencimento a um ‘clube de amigos’ (ele mesmo diz “Eu preciso de amigos”) e ao de se superar para se honrar, dentro das memórias que o ligam ao pai, que está preso, (“Você é o melhor dos melhores, filho” – algo que depois o próprio Flash subverte e diz em certo momento: “Um dos melhores entre os melhores“, com um gesto de maior mais humildade, já que ele sabe agora que não é o único com poderes especiais a lutar) até o fim é o que dá ritmo à narrativa.

Essa relação provoca momentos encantadores e outros um tanto desconectados mesmo da dinâmica do mundano, dentro da dicotomia entre “sagrado e humano”.

Vejamos aqui (mais uma vez), os filmes clássicos do Superman de Christopher Reeve são sobre a percepção do Super-Homem sobre a humanidade, este “Snyder Cut” já é um filme sobre a percepção da equipe e da humanidade sobre o Superman, mas também sobre como essa percepção é fabricada. É um filme que assim como a realidade atual acredita nos bilionários como os escolhidos de Deus, übermenschen dignos do encontro com o sobrenatural, na forma do Bruce Wayne com seu encontro inicial com os morcegos e premonições em forma de sonho, nisso o endeusamento da figura messiânica (bem, os seres de Apokolips e servos do Lobo da Estepe temem o Superman mais que tudo, pois ele representa ordem, controle, luz e, acima de tudo, esperança – isso, claro, se dentro do lado certo da luta, porque se os pesadelos de Batman se concretizassem, seria o fim, Superman seria tirano).

Ben Affleck como Batman em ‘Liga da Justiça de Zack Snyder’ | Reprodução: Warner Bros. Pictures

Há aqui uma mesma abordagem plástica de “Batman vs. Superman” (2016) e toda uma prática e limpidez do CGI que busca redefinir a dinâmica dramática cênica em prol de um ideal tecnicista.

Uma segunda chance para Snyder que rejeita toda aquela burocracia de universo compartilhado megalomaníaco e se foca mesmo no que ele é bom: contar sua história e a ação objetiva. O filme até tira uma vitalidade cartunesca de cenas bem simples (toda aquela passagem em que Flash salva a garota por quem é apaixonado do acidente é muito boa nesse sentido).

Das maiores mudanças que o público poderá assistir na versão de Zack Snyder da história da Liga, como bem apontou Marcelo Hessel, uma das principais é o arco de Ciborgue. No filme lançado em 2017, a subtrama envolvendo Victor Stone, o pai Silas e os cientistas do S.T.A.R. Labs foi reduzida, e o desfecho do drama entre Ciborgue e Silas era outro, oposto ao que o “Snyder Cut” agora repara e apresenta.  

Bem, sabemos que Ciborgue morre, isso não muda: morre em decorrência de um trágivo acidente e renasce desumanizado como máquina, e reencontra um propósito de ser no automatismo dessa ciberevolução. Uma das cenas mais emblemáticas do “Snyder Cut”, inclusive, é quando Ciborgue manipula os dígitos em contas de bancos digitalmente para dar uma fortuna a uma mulher necessitada, cuja rotina ele observava por telas à distância. Ela não sabe que foi ajudada por ele e, enquanto a observa eufórica, Ciborgue sai escondido; as únicas pessoas na rua que o veem tratam o salvador como um Frankenstein (um humano, agora monstro, mas não pode ser mais humano, pois suas partes são cibernéticas e maquinárias – é até como diz a teoria do Paradoxo do Navio de Teseu, morto, agora ressuscitado e melhorado por meio da ciência como salvação). Obviamente, não há a menor dúvida de que é terrível a tragédia do Ciborgue, mas o que se vê no filme é essencialmente um personagem entediado com a condição que agora carrega e está condenado a viver sob (ou seria sobre?).

Nesse sentido, voltemos a Hessel, na prática, o mundo que Snyder vê para os super-heróis da DC é determinado pelo paternalismo.

De fato, é uma ideia bem interessante e tem grandes razões para ser levada a sério. Isso, claro, encontra eco na orfandade tanto de Clark quanto na de Bruce Wayne, quanto nas questões de cada um: desde a Diana, Mulher-Maravilha, até Barry Allen, Arthur Curry (Aquaman) e Vic Stone (Ciborgue). É algo que permeia a narratividade e o escopo espetacular da ação.

E no que a maioria dos filmes de super-heróis têm de mera burocracia e de megalomania (sim, essa palavra até cabe bem nos projetos de Snyder), este aqui, “Snyder Cut” tem de objetividade e até de iconoclastia em algum sentido.

Os filmes da DC sempre sofreram com a interferência da Warner Bros. Só após o Universo Estendido DC encontrar seu fim precoce com o fracasso de crítica e bilheteria de “Liga da Justiça” de 2017, que o estúdio finalmente começou a permitir total liberdade criativa aos diretores em seus filmes. 

E como o universo compartilhado da DC em si tem se mostrado uma verdadeira bagunça, uma nova chama se acendeu no horizonte da Warner de tal forma que o estúdio começou a apostar em produções individuais sem muita conexão com o resto do universo. “Aves de Rapina”, “Aquaman” e “Shazam!” são considerados os melhores filmes do DCU justamente por trazerem histórias fechadas, herméticas, focadas mais em seus personagens do que no seu universo e “Mulher-Maravilha 1984”, por bem ou por mal, investiu nisso mais uma vez também.

Então, o “Snyder Cut”, ironicamente, foi uma luz no universo escuro e sombrio iniciado por Zack Snyder em 2013 com “O Homem de Aço”, uma vez que rejeita antecessores e continuidade para chegar a nós como um projeto pessoal potencializado e, por fim, pronto. Com isso, trazendo um novo frescor e mais vivacidade, ainda que dentro da estilização sombria e que soa tão aborrecida sempre (algo que dentro da filmografia ‘super-heroística’ de Zack Snyder sempre foi uma constante, mas não como um peso ou algo ruim), mas como forte elemento de linguagem dentro de suas obras).

Igualmente polêmica é a decisão do diretor de adotar uma razão de aspecto reduzida, de 1.33:1, para (segundo declarou em entrevistas) “manter a sensação da tela IMAX” – o que, ok, nisso não faz o menor sentido quando consideramos que a experiência IMAX está muito mais relacionada ao tamanho colossal da tela (algo ausente no streaming, obviamente) do que à razão de aspecto em si. Mas beleza, reconsideremos.

Tudo isso é compensado no espetáculo, que sim está perfeitamente justificado aqui.

E embora esteja ainda longe de ser o absoluto “visionário” apregoado pelo marketing da Warner (que também tentou vender seu longa como “revolucionário”), o diretor Zack Snyder se revela suficientemente inteligente para mais uma vez adaptar seu estilo às necessidades da obra que conduz, abandonando o tom capenga e confuso, como uma salada entre o sombrio do próprio Zack Snyder e o colorido de Joss Whedon do filme de 2017, para conferir a obra seu senso de unidade estilística.

‘Liga da Justiça de Zack Snyder’ | Reprodução: Warner Bros. Pictures

Como resultado, “Liga da Justiça” torna seu universo bem mais grandioso e épico, como bem mais claustrofóbico – o que, aliado à forte dessaturação da paleta de cores, torna o filme interessante nesse quesito de um ponto de vista puramente plástico. Em vez de peso dramático, há apenas… escopo visual. A melhor coisa é como o Snyder assume que não existe lugar para um meio-termo dramático. O cineasta realmente não está tão interessado em qualquer meandro, digamos, ‘historicizante’ que a obra venha a oferecer, embora tenha sua história – e que, por ironia a isso, ainda é muito bem narrada aqui, ao contrário do que reclamaram os detratores.

A ação, possivelmente um bom motivo do filme seguir, segue a mesma linha: uma experiência primitiva de estímulos. É um filme de imposição em todos os sentidos. Digo,  respeita o tempo dos acontecimentos, mas as sequências não relatam uma coisa, e sim se forjam numa única vontade de aniquilamento daquilo que está em cena.

Trata-se da volta de um cinema-fetiche tão engajado nesse movimento que é inegável o talento do Snyder  em construir um projeto agressivo e niilista é tão fascinante. 

Não é nenhum segredo que é praticamente impossível ver um blockbuster nos dias de hoje que não dure mais do que deveria. Mas o “Snyder Cut” usa o seu tempo da melhor maneira possível. Existe mesmo uma progressão sensorial que te mantém encantado – ou, dependendo do bom humor de quem for assistir, aprisionado, já que é um cinema de determinações violentas – por toda a narrativa.

É uma espécie de anti-encenação onde a própria câmera é passeada de um lado pro outro sem nenhuma leveza ou sentido dialético.

Porém, talvez o maior tropeço de Snyder como realizador resida em sua, no mínimo, ‘incorreta’ seleção musical, já que chega a ser constrangedor ouvir canções como “Hallelujah” (que muitos acham que já deveria ter sido aposentada no cinema depois de “Shrek”, mas só se tornou cada vez ainda mais frequente na Sétima Arte). E, nisso, até a decisão de ignorar a música pauleira do “Icky Thump” do The White Stripes numa cena de Aquaman enquanto ele caminha bebendo para a ponta de uma espécie de píer, para desaparecer em meio à tempestade das marés furiosas. A musiquinha selecionada aqui não casa nem um pouco com o momento, deixando um tom de imaturidade por parte das decisões da direção.

O resto… é até relevável. E representam apenas algumas más pinceladas em meio ao todo absurdamente grandioso.

E nisso, nessa “ejaculação fantabulosa” do diretor, paradoxalmente existe uma contemplação também. Especialmente no uso da cor e do excessivo slow motion (e da música etérea em coro toda vez que a amazona Mulher-Maravilha entra em cena pra partir para a ação) da interferência gráfica como um acessório que ao mesmo tempo que até não dificulta a visão, a torna plena num sentido mais abstrato.

A prova final que o ideal do blockbuster moderno está muito mais próximo do anti-filme do que do storytelling: o cinema não tem um futuro definido (seguindo a teoria de que arte é uma ‘finalidade sem fim’) e Zack Snyder sabe bem disso.

Todo o drama do filme dele, quando existe em peso, ou é exagerado demais (porque não necessariamente é o foco, mas explorar as potencialidades da banalidade entre o real – o mundano – e o divino), ou é uma desculpa para viajar em seu espetáculo de ação.

Para Mikhail Bakunin, expoente do anarquismo, a paixão para destruir é uma paixão criativa (tanto quanto aquela para construir), e não é difícil entender por que o “Snyder Cut” é um objeto sintomático e até peculiar na relação que Hollywood e fãs mantêm hoje em dia. 

Os fãs mandam, mas um desejo de se redimir, de completar um projeto e de honrar o luto e a memória da falecida filha Autumn… isso fez valer!

E, no grosso, tendo em vista o que o projeto é desde que sua renascença foi anunciada, não é o que mais importa? Então, seja como for, celebremos: por Autumn!


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