Oscar 2021 | ‘The Father’ de Florian Zeller nos insere na perspectiva confusa de um senhor demente, com uma das mais críveis performances da temporada

Anthony Hopkins foi descoberto em 1991, por seu desempenho fenomenal em  “O Silêncio dos Inocentes”. Com apenas 16 minutos de tela, Hopkins surpreendeu o público e a Academia, recebendo seu primeiro e único — até o momento — Oscar. Desde então, ele não se cansa de nos fascinar, e seu próximo projeto não é a exceção. Neste ano, por seu brilhantismo perturbado em The Father’ (“Meu Pai“), Anthony galgou sua sexta nomeação ao Oscar, na categoria de “Melhor Ator”, na 93° edição da premiação.

‘The Father’, ou ‘Meu Pai’, em tradução livre, nos apresenta uma abordagem totalmente inovadora em uma temática bastante batida: a demência e o Alzheimer na terceira idade. 

Dramas como “Pra Sempre Alice”, “Longe Dela”, “Meu Pai, um estranho”, e tantos outros, são formidáveis, mas possuem seu próprio ‘calcanhar de Aquiles’ muito evidente e trivial: no transcorrer da trama, o público quase sempre assume os sentimentos dos familiares e amigos do demente e se vêem estranhando e se distanciando do personagem, que passa á agir como uma criança, ao ponto do telespectador sentir mais dó do que empatia pelo protagonista. Já aqui, surpreendentemente, ocorre justo o oposto. Em vez de trazer um enredo que induza o telespectador á se colocar na posição de platéia, o estreante diretor francês Florian Zeller nos transforma no próprio demente. Com cenas barafundiosas, nos faz questionar o que é real e o que é ilusão e nos evidencia como é uma vida onde não se pode acreditar na maioria das coisas e pessoas que vê e escuta.

O drama se inicia em uma cena aparentemente ‘clichêzada’, ao toque de uma linda opera com batidas marcantes, onde a filha do protagonista, a senhorita Anne, — interpretada por ninguém menos do que a nossa eterna raínha Elizabeth, de ‘The Crown’, Olivia Colman — chega no apartamento de seu pai (Hopkins) lhe dando uma bronca, referente ao modo como ele costuma tratar suas cuidadoras:

“O que aconteceu?! Você não pode continuar se comportando assim. Ela está aqui para te ajudar, ou melhor, estava! […] Cada vez que as despreza, fica mais difícil encontrar outra.”

Neste momento, o pai diz que não está nenhum pouco afim de morar com uma ladra e culpa a cuidadora Ângela de ter roubado seu relógio. No entanto, ele acaba por encontrar o acessório em seu “esconderijo de objetos de valor”, e assim somos apresentados a um de seus primeiros indícios de demência. Nesta mesma cena, um pouco além, Anne conta que conheceu um homem em Paris, que se mudará para lá e que, por este motivo, precisa deixar o pai nos cuidados de alguma cuidadora profissional ou enfermeira.

“Ah, é por isso que você está tão entusiasmada com esta enfermeira morando comigo? Os ratos estão saindo do navio, não é?!”

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Anthony (o pai) começa a rouquear a voz, tremer os lábios e mãos, e assim lacrimeja suavemente, com o desespero do abandono evidente em seu semblante.

“Virei lhe  visitar todo fim de semana, mas não posso deixá-lo aqui sozinho, não é possível. É por isso que… se você se recusar a ter um cuidador, vou ter que…, pai você tem que me compreender…”. Com esse dizer de Anne, a cena é cortada abruptamente, fazendo-nos formular a mesma conclusão que Anthony formula em sua mente: “ela quer me mandar para um asilo”.

Anthony coloca outra ópera para tocar no rádio [pelo que podemos observar, este é o gênero musical que ele mais ama], então organiza os utensílios — os quais acabou de comprar — em seu armário da cozinha. Neste momento, repentinamente, um barulho brusco, igual a um fechar de porta, acontece. Ele começa a andar pela casa, chamando por Anne, perguntando se foi ela que chegou, sem nenhum retorno aparente, quando se depara com um homem, de uns 50 anos, em sua sala de estar, lendo o jornal do dia, pacificamente. Anthony fica perplexo e pergunta quem é ele e o que está fazendo em seu apartamento. A questão é que o contexto de agora é totalmente o oposto ao contexto da cena que se passou.

Em primeiro lugar, o apartamento aparentemente não é de Anthony. Na realidade, a propriedade é do marido de sua filha, Paul (interpretado por Mark Gatiss), o homem que se encontra sentado no sofá da sala. O dito cunhado percebe a confusão nítida no olhar inquieto de Anthony e então liga para sua esposa. Enquanto aguardam pela chegada de Anne, Anthony pergunta sobre a viagem à Paris, da qual Anne o tinha informado:

“Mas essa coisa sobre a França? Ela não deveria ir para Paris para? Outro dia ela me disse que iria morar em Paris.”

Porque ela iria à Paris?  — indaga Paul.

Ela conheceu um francês. — Responde Anthony.

Bem, ela não mencionou isso para mim, mas tenho certeza que pretende. — Responde Paul novamente, em um tom sarcástico.

Por mais confusa que esta conversa possa ser, isso não chega nem aos pés do que ainda nos aguarda (quando eu digo “nos”, me refiro á Anthony e á nós, telespectadores, afinal de contas estamos todos em um mesmo barco, tentando ultrapassar uma densa tempestade, repleta de confusão e realidades síncronas). 

Anne chega, mas é uma mulher diferente de antes (interpretada também por uma Olivia, mas, desta vez, não a Colman, e sim a Olivia Williams). Ela entra com uma sacola e diz que comprou uma galinha para cozinhar para o jantar. Anthony, atordoado com essa mudança na realidade, tenta se encaixar no novo contexto, citando o marido de Anne, com o qual acabara de se deparar e conversar. No entanto, quando menos se espera, mais uma mudança ocorre:

“Que marido? James? Eu não sou mais casada pai. Me divorciei de James há cinco anos. Você não se lembra?” diz Anne, tentando compreender a situação.

“Bem, então quem é ele?” — Pergunta o pai.

“Ele, quem?” — Anne indaga novamente.

“Paul, o que pegou a galinha de sua mão e levou à cozinha!” — Responde Anthony, com raiva e cansado de todo este emaranhado de realidades.

Acontece que Paul, o tal marido que apenas Anthony e nós conseguimos ver, sumira tal como pó em uma ventania. 

Paul não é a única ilusão de Anthony que nos engana neste drama, muitos aspectos acabam por se tornar inconsistentes.  Qual cenário é real e qual deles alucinou Anthony se torna impossível de detectar e diferenciar. O que estamos vendo, em cada cena que se passa, parece real — não apenas para Anthony, mas também para nós — e essa é a jogada mestra do filme. Zeller constrói um mundo em uma única cena, aparentemente verossímil, apenas para nos evidenciar como nossa mente é fraca e enganável na cena que se segue, miragens atrás de miragens. Ele até nos dá pequenas pistas precisas, que nos induz ao pensamento de que aprendemos o segredo e de que, desta vez, estamos sim em um solo seguro e real, mas então, tal como mágico brincando com seus truques à platéia, ele nos engana novamente. Quando menos reparamos, ele nos puxa o tapete e caímos em sua armadilha em todas as vezes. 

Colocar pessoas, mentalmente saudáveis, na mente deteriorada de um senhor com sintomas de Alzheimer, através de uma simples tela, e fazer com que sintam os mesmos sintomas, não é algo simples de produzir. Para que isso aconteça, é necessário um aglomerado de fatores muito bem posicionados, e é isso que temos aqui em ‘The Father’. Seguida de uma excelente direção, com um roteiro bem delineado e um tanto orquestrado — que intenta e consegue nos enganar — temos também excelentes atuações, que não poderiam ser trabalhadas de forma mais ilustre e por atores mais talentosos do que os aqui escalados. 

A atriz Imogen Poots traz uma certa jovialidade revigorante a um filme que cresce e se desenrola lentamente. Ela interpreta a mais presente das versões da cuidadora Laura (a personagem possui duas versões no filme). Anthony se apega a esta cuidadora, devido a semelhança assustadora de Laura com a sua filha mais nova Lucy, que tanto ama e há tempos não vê (no fim de tudo, descobrimos o porquê disso). Ele até flerta com ela em alguns momentos, à elogiando. Serve uísque e a presenteia com um número de sapateado, dizendo  que nos anos de sua juventude era um excelente dançarino. Sim, esta é apenas mais uma de suas inúmeras “historinhas”, mas devo dizer que ele sapateia muito bem e que, com essa dança, arrancará algumas gargalhadas do público, assim como fez com Laura.

Estreia nos cinemas “The Father”, filme que junta Anthony Hopkins e Olivia  Colman nos principais papéis – Comunidade Cultura e Arte

Rufus Sewell, intérprete da segunda versão de Paul que aparece na trama (o marido de Anne), também possui um excelente desenvolvimento em tela. Ele é o que mais insiste na ideia do asilo. Com seus monólogos irritadiços e ignorantes, assumimos a posição do próprio protagonista (Anthony) e começamos a desprezar Paul. No entanto, bem no fundo, o entendemos (um pouco), já que este constantemente compartilha a atenção de Anne que, em sua maioria, vai toda para o pai.

Muitos desempenhos louváveis se fazem presente aqui, mas Olivia e, principalmente, Hopkins, são os holofotes.  Olivia Colman assume um papel que se distingue da maioria de seus últimos trabalhos, um tanto frios.

Olivia Colman & Florian Zeller Interview on The Father & Working with  Anthony Hopkins

Aqui ela se apresenta como uma filha próxima do pai, e que se importa com ele, mas que se vê de mãos atadas. Ela nos entrega uma performance bastante emotiva, amorosa e profunda. Cenas com olhares lustrosos, de lágrimas que estão prestes a rolar, são recorrentes nos monólogos de Anne. O fator um tanto misterioso da personagem é muito bem empregado por Olivia e sua química com Hopkins é mais do que evidente. Contudo, quem realmente chama a atenção da banca e do público — com sua atuação feroz e, ao mesmo tempo, vulnerável — é ele. 

Anthony Hopkins encarna o personagem, ao ponto de dividir com este até mesmo seu nome. Cheio de maneirismos, ele exprime o dia a dia de um ser humano que se vê perdendo sua própria mente e seus familiares. 

“Sinto-me como se estivesse perdendo todas as minhas folhas. Eu não sei mais o que está acontecendo, você sabe o que está acontecendo?”

A construção física e corporal do personagem é um dos pontos mais essenciais na maioria das performances. Neste plot, Anthony vai assumindo uma posição cada vez mais encurvada de seu corpo e, dessa maneira, evidencia a vulnerabilidade de seu personagem, característica que se intensifica em cada cena que se passa. O olhar vago, que ele performa em algumas cenas, e seus choros, com gemidos, criam um senso de empatia entre o telespectador e a dor existencial do protagonista.

THE FATHER Bande Annonce Officielle (2021) Anthony Hopkins, Drame - YouTube

O filme é todo fundamentado nos monólogos e conversas, afinal de contas, o drama em questão foi criado a partir de uma peça teatral, dirigida e roteirizada em 2014, pelo próprio Florian Zeller (diretor do filme).

Em ‘The Father’, alguns pontos de abordagem podem cansar o público, à medida que a trama se desenvolve, mas isso faz parte da experiência de se colocar no lugar de um demente de terceira idade, que já viveu o vigor da juventude, mas que agora não tem forças nem pra se lembrar dos que mais ama. 

Muitas das agonias de Anthony são compartilhadas conosco, mas não até o fim, e este é o mais trágico dos fatores. Quero dizer, sentimos a mesma confusão que ele, depositamos nossa confiança na maioria de seus delírios, mas esta desordem de sentidos não é eterna para nós, ela se acaba com o apresentar das últimas cenas. Nos minutos finais da trama, começamos a montar este quebra-cabeça, compreendendo assim o que é real e o que é ilusão, mas ele não, o destino dele é estar preso nesse loop de falsas realidades até a morte. O sentimento é como se conseguíssemos escapar de uma prisão, na qual fomos injustamente colocados e impiedosamente torturados, mas sem conseguir salvar o nosso companheiro de cela, que não só perde suas memórias, sua independência e seus convívios, mas que, acima de tudo, também se perde.

“E quanto a mim? Quem… quem exatamente sou eu?”


Entre as nomeações ao Oscar deste ano, ‘The Father’ recebeu a de “Melhor Ator”, “Melhor Atriz Coadjuvante” para Olivia Colman, “Melhor Filme”, “Melhor Roteiro Adaptado”, “Melhor Direção de Arte” e “Melhor Montagem”. Aqui no Brasil, o drama chega nas plataformas digitais de aluguel no dia 09 de Abril.

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