Crítica | “Servant” (Apple TV Plus): crítica das duas temporadas – lançadas até agora! – num texto só

Vejamos… No mínimo, é bem interessante o tom de inquietante estranheza que há em “Servant”, permeando a narrativa, incessantemente, desde o primeiro episódio.
E, afinal, já devemos ressaltar, logo de início: que bela façanha a de “Servant”, de cativar o espectador com uma obra de tons narrativos tão surpreendentes justamente sobre… culinária e religião.
Sim, isso mesmo. Você leu corretamente. Pode parecer estranho e até chocante ler isto assim, em primeira instância, mas, dentro da lógica da obra seriada, faz muito sentido.
E permeando os núcleos desses dois tópicos como preceitos: culinária e religião (por meio do constructo do estatuto da fé, de um dispositivo árduo de uma educação religiosa fervorosa), há o espectro do luto e das obsessões (sobretudo, maternas) perpassando a história.
Tudo bem, beleza, há muito mais acontecendo em “Servant”, e as tentativas de classificar essa série concebida por Tony Basgallop e pela absurda mente criativa de M. Night Shyamalan – que também é produtor-executivo aqui -, tematicamente – para além da mera opinião de efeito – podem ser frustrantes a princípio. É tudo tão complexo e há tanto detalhe e tanta coisa acontecendo – ao mesmo tempo que, por episódio, pouca coisa realmente acontece – que torna complexo definir e cravar apenas uma linha temática sobre a série.

Dos trabalhos do cineasta indiano (radicado nos EUA) Shyamalan, conhecidos por uma ótima transição entre gêneros (“A Visita” é muito mais do que meramente eficiente nesse sentido, é até primoroso) este é o que mais intensamente os modula, ao passo que também os pincela e segue embrenhando tudo nos mínimos detalhes e nas sutilezas e  no vai-e-vem do drama, com leves pitadas de humor até chegar ao terror, passando pelo trágico de natureza familiar, e “Servant” faz desse passeio metalinguístico sua própria razão de ser. E é triste notar que esta série é mais uma vítima do excesso de serviços de streaming na atualidade, o que faz com que com alguns sejam menos usados, logo, como consequência natural e direta, algumas produções não serão vistas. 

A chegada de novos serviços de streaming sempre culmina no mesmo desafio: atrair um público habituado a assistir ao catálogo da Netflix. A plataforma da Apple lida com a questão recorrendo à estratégia de reunir nomes interessantes, mas de qualidade, porém nem tão conhecidos assim, como Morten Tyldum, de “Defendendo Jacob”, ou nomes de grande peso, como o caso de M. Night Shyamalan.
A princípio, a presença do grande diretor e roteirista pode já sugerir um mistério na linha de “O Sexto Sentido” e de “Corpo Fechado“ – o que já é de se esperar dele -, porém o drama da proposta possui um impacto bem maior do que o suspense trabalhado com o freio de mão puxado. Pois a série não tem pressa alguma de progredir. Tudo tem parcimônia e meticulosidade. Cada detalhe… cada momento…
E, sim, pois é…Escondida em uma plataforma pouco vista no Brasil, a história da mãe que perde o filho e o substitui por um boneco merecia muito mais atenção de público e da crítica especializada, pois nada no entretenimento atual mistura tão bem comédia, drama e terror como esta série – uma intersecção genial de gêneros.

Ora, Servant é uma comédia?” – já ouço questionarem ao longe. Bem, não exatamente. Porém, uma das principais marcas da obra é como ela propõe situações extremamente ambíguas em que o riso do espectador acaba sendo uma possível reação a uma situação bem inusitada no universo dos Turner. A maior qualidade da série nesse sentido é como, no fim das contas, ela transforma o elemento comédia em um artifício do absurdo. Seja por meio das situações bizarras e surtadas que narra, seja pela forma que lida com o pano de fundo da fé e do fantástico.
O casal Dorothy Turner (Lauren Ambrose) e Sean Turner (Toby Kebbell) contratam a jovem babá Leanne Grayson (Nell Tiger Free) para cuidar do bebê Jericho, já que o marido é um ‘bon vivant’, consultor gastronômico ocupado e a esposa trabalha fora de casa como uma respeitada jornalista.


E, claro, não poderíamos dele: o Rupert Grint (sim, ele mesmo: o nosso eterno Ronald Weasley, de Harry Potter) que, por sua vez, encarna Julian, irmão beberrão e bem marrento de Dorothy, figura muito importante para a narrativa da série, presente como o parente mais presente na ajuda ao casal, mesmo lhe faltando delicadeza em muitos momentos. 
Entretanto, com o passar do tempo, o que parece ser uma situação casual logo se revela uma trama de rumos bem incertos e inesperados, iniciados já pelo próprio fato de que o menino morreu precocemente e, como dito, este Jericho, na realidade, é um boneco colocado ali para amenizar a depressão de Dorothy.
Sério, apenas por meio da própria sinopse, já percebe-se que o destaque da narrativa é a interação básica entre o casal Turner e a babá, principalmente as duas moças. A partir daí, o roteiro trabalha muito bem o drama evocado pelo peso daquilo que não se sabe sobre tais figuras: a mãe bloqueou de si mesma a dor da perda do filho durante o colapso após a tragédia e continua acreditando que o boneco usado como terapia tem vida; já Leanne esconde dos patrões a totalidade de suas origens, como mais informações pessoais, traços da personalidade e reais intenções de trabalhar ali. Seguindo a mesma ideia de impactar o espectador por reviravoltas que quebram pré-julgamentos dos personagens estão as performances das atrizes: A Lauren Ambrose encarna Dorothy como alguém aparentemente expansiva e extrovertida, mãe amável e dedicada, profissional jornalística extremamente responsável que, ao mesmo tempo que revela uma intrigante, doce, mas frágil inicência, e gradualmente, revela cicatrizes de traumas reprimidos e sofrimentos prestes a explodir a qualquer momento; e a Nell Tiger Free, por sua vez, é a babá Leanne, uma jovem tímida e dedicada, que tem segredos enigmáticos, variações emocionais muito  imprevisíveis e um grande fervor de fanatismo religioso. Aliás, fica claro (ou mais próximo disso!) que ela tem seus poderes, mas ali ainda fica certa ambiguidade que nos permitem várias interpretações a partir disso.
A babá, no entanto, mesmo com tudo isso e com seu forte quê de estranheza, age naturalmente desde que chega à residência, como se nada de estranho tivesse acontecido.
A princípio, a série acompanha majoritariamente o ponto de vista de Sean, o pai intrigado e profundamente incomodado pela presença de Leanne, a babá aparentemente responsável pela “ressurreição” do filho. Durante a primeira metade da temporada, o espectador não tem contato direto algum com os motivos pelos quais o marido concordou em utilizar um boneco como filho. Com o tempo, no entanto, a série vai desvelando as engrenagens por trás dessa substituição, e passando a flertar cada vez mais com o fantástico e com o sobrenatural. É interessante como Sean é constantemente pressionado pelo enredo: ele não pode demitir ou confrontar Leanne, pois ela acaba se tornando a nova “queridinha” da esposa, assim como não pode revelar a verdade sobre a “ressurreição” do filho, pois isso “ativaria” as dificuldades do luto da amada.

Superficialmente, é possível dizer que trata-se de uma premissa de minissérie, que soa muito pouco passível de desdobramentos suficientemente interessantes dentro desse mesmo contexto após o fim do primeiro ano. E, de fato, “Servant” explora super bem tudo o que pode explorar dentro do cenário que apresenta na primeira temporada. Logo, ao fim dos dez primeiros episódios, não resta dúvida alguma: apesar de contar a história terminando sempre com um final “aberto”, todas as respostas que poderiam ter sido dadas ao espectador já foram entregues. O segundo ano da série, já lançado e completo pelo Apple TV Plus, foi absurdamente distinto até em senso de urgência (que, por incrível que pareça, perpassa tudo na segunda temporada – tudo cria caso e tudo dá muita tensão, tudo é motivo para tumulto na casa dos Turner) e de inquietude da temporada de estreia, haja vista o ambicioso e perigoso desfecho de seu episódio final. Claro, ainda que o tom da atmosfera não mude em si, a progressão de tudo dá novos adornos à obra. Se espremermos a trama da segunda temporada, até o último episódio que vimos de “Servant”, quase nada sairá no suco em termos de desenvolvimento narrativo. No máximo podemos dizer que o fato de Leanne ter voltado e ter ficado confinada à força por semanas, como a overdose de Julian por seus vícios fez com que Leanne usasse seus poderes estranhos pela primeira vez claramente em público, ainda que, provavelmente, ninguém tenha realmente percebido o que se passou. Mas não digo que nada aconteceu como algo negativo, já que essa é basicamente a regra da série, com seu principal criador/idealizador e showrunner Tony Basgallop trabalhando tudo em queima muito lenta, com mínimos incrementos de um episódio para o outro.


Bastante coisa acontece desde a última season finale (da primeira temporada) e, pasmem, nada de relevante acontece na totalidade. Pois é, curioso essa contradição, não?
Afinal, como já tive oportunidade de afirmar em minhas conversas com certas pessoas sobre a série, ninguém, absolutamente ninguém em “Servant”, desde o seu início age de maneira “normal”. O que é normal depende muito da definição de cada um, é claro, mas, já descontando Leanne e os demais membros de seu culto religioso, como o tio George e a tia May e a tia Josephine (aparecida no último ep.) o restante dos personagens transita entre o obsessivo, o nervoso e, no caso de Dorothy, muitas vezes resvalando na loucura mais absoluta (o que foi aquela espécie forca preparada por ela no porão??? E aquela tentativa clara de suicídio dentro do antigo quarto de Jericho, ao pé do berço do menino, enquanto Sean se esbravejava ao lado de fora da porta do cômodo, assustado, triste decepcionado com a descoberta dos trágicos propósitos da esposa), sendo que não ajuda em nada a presença de “pessoas estranhas” como Frank, pais de Dorothy e de Julian, e de sua namorada muito mais nova e completamente parva Kourtney (sim, com ‘K’). E o engraçado (ou estranho mesmo) é que tudo é sempre encarado na base do “a vida é assim mesmo” para os mais surreais acontecimentos ao redor deles, desde doenças estranhas, passando por curas milagrosas, até perdas de memória e, lógico, o misterioso buraco que surgiu no subsolo da casa há um bom tempinho já. Com isso tudo, parece-me que isso é Basgallop dizendo que, neste seu universo muito particular, esse monte de bizarrice não é mais do que outra segunda ou terça-feira, o que cria uma ambientação ainda mais aflitiva aos acontecimentos.
Mas que acontecimentos se eu escrevi aqui que  praticamente quase nada acontece?  Sim, pois é: eis a questão. É que “Servant” é uma obra para ser apreciada em seu todo, em seu agregado, em uma visão macro, para trás lembrando dos desenvolvimentos por temporada, e não meramente por episódio. Sei que toda série tecnicamente é assim, mas, peculiarmente, o Basgallop não tem muita preocupação em dividir sua história de maneira que cada episódio tenha seu quinhão de ação e/ou desenvolvimento. Muito ao contrário, ele parece olhar para a série como um longo filme de horror que ele dividiu em pedaços apenas para facilitar a degustação. Via de regra, cada episódio é um pequenino incremento à narrativa macro (o arco total), o que pode sim dar a impressão, aos mais impacientes e afobados, de que nada realmente acontece. No entanto, essa impressão acaba por ser só isso mesmo, uma simples e pura impressão.
Outra prova de que os personagens da série não são nada “normais” é aquela meia amarela de Sean… que, aliás, por sinal, só soa bem aleatória.

Temos o atropelamento (seguido de morte, certo?) do tio George escondido à sete chaves por Leanne de um lado, a tensão criada pelo suposto retorno de Jericho (ou seja lá o que aquele pequeno ser é na verdade) de outro e, claro, toda a queda aguda de Julian cujo desmoronamento só abre espaço para Rupert Grint trabalhar seu desagradável personagem com bastante destaque e, digo mais, dedicação ainda, logo sucesso (já que o ator é brilhante e nos provou isso vezes antes). Só não me perguntem o que vai acontecer com o fim da misteriosa tia Josephine, pois não tenho a menor ideia das repercussões disso futuramente. E nem daria para ter qualquer noção disso mesmo.
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Marcada por uma alternância pontual de pontos de vista, a série é paciente ao destrinchar o ambiente familiar em que se desenrola, caminhando em um ritmo praticamente ideal. Mesclando dramas pessoais à fantasia sob uma enervante atmosfera de suspense, a série muito se assemelha às já clássicas tramas de Shyamalan, reconhecendo, do início ao fim, o charme do “esquisito” – como a crítica do pessoal da Lacrymosa sobre a série bem descreveu.
E eles (os personagens principais) sofrem na pele as consequências da entrada do sobrenatural que se abate sobre a residência em um dos primeiros plot twists: o marido vivencia fisicamente o perigo com marcas em diferentes partes do corpo e o irmão sente emocionalmente a dificuldade de encontrar explicações e soluções racionais para os enigma em torno de um Jericho ‘vivo’ ou não e de Leanne.

Até porque tudo o que ocorre sobretudo ao longo da narrativa da série tem a forte presença do peso do nome do “falecido” bebê Jericho. Ora, isso não seria estar vivo ainda por definição?
Quando tudo gira em torno de você, como pode estar mesmo morto? Talvez seja usar as palavras erradas para definir as coisas o principal problema: falecer não necessariamente é o mesmo que “perder”. E só se morre quando se é esquecido. Há muitas teorias do pós-morte que discorrem sobre isso, logo, sequer perderei tempo aqui com isso.


E, aliás, este nome do bebê, Jericho, não poderia ser mais sintomático das intenções da autoria da série tendo em vista as tendência do próprio Shyamalan, como também mais simbólico: Jericho, ou, em bom português, ‘Jericó’, já teve inúmeros significados nas culturas sobretudo de natureza sagrada-religiosa, sendo a mais importante: uma antiga cidade bíblica, situada na Palestina, às margens do rio Jordão. E mais: o nome Jericó significa “perfumado” e deriva da palavra cananeia, que tem o mesmo sentido. Acredita-se que Jericó seja uma das mais antigas cidades continuamente habitadas do mundo, como ‘A Terra Prometida’, por isso, é uma importante fonte de informações sobre as antigas habitações humanas no Oriente.

Beleza até aqui… Não sei se já disse, mas quem costuma ler os meus textos (isso, lá vamos nós!), já deve ter percebido isso, um dos dramas de que mais gosto na arte narrativa é o enfrentamento direto do luto, cuja teoria dos cinco estágios (claro, nem sempre absolutamente todos, muito menos na mesma ordem) são explorados com extra dedicação e absurda qualidade na série da Apple TVPlus.
O Shyamalan já possui uma carreira de bastante prestígio dedicada ao cinema de suspense (ainda que tenha sido anunciado por aí, nos últimos anos, como cineasta decadente, algo de que discordo em absoluta certeza). Mas, claro, o cinema dele sempre foi sobre significações e representações nem sempre sobre tudo o que está, em absoluto ‘pé da letra’ em tela. 
Ele gosta e sempre gostou de metáforas e simbolismos para adornar suas obras de grande complexidade para tratar das aparições às crises do visível. O cinema dele sempre teve, de diversas formas e perspectivas, como cerne o tratamento e a análise minuciosa do estatuto da fé – desde os seus primórdios, passando até por “Sinais”, “A Vila” (e estribilho…). É fascinante como podemos investigar possíveis perspectivas do olhar sobre as obras de Shyamalan no que tange as diversas matrizes (e matizes) sobre as quais podemos entender que versam a sua arte. Um fazer artístico singular, que busca, na potência da imagem (e de suas crises) – não necessariamente, imagem fílmica; ele costuma partir do ‘real’, do que está em nosso mundo para isso, uma presença do próprio imaterial, em si, em cotejo com um mundo cuja concretude nunca acaba de se afirmar.
Conflito este que também se manifesta em sua estrutura comercial – e, querendo ou não, de todo modo sempre tencionada pela origem oriental de Shyamalan. 

Enfim, uma obra, como um todo, que sempre transita entre “dois mundos”: o anti-material, próprio das imagens (fantasmagórico ou não), e um universo sistematizado pela pura ordem do mundano.
Então, em fricção com essa dimensão de natureza hermética de um mundo de capital (sendo os EUA grande epítome dessa ideia), podemos perceber quatro forças-chaves que irrompem em sua obra: primeiramente, o estatuto da fé, como já citado; o feminino; o infantil e o fantástico. 

O feminino sempre se manifesta como enfrentamento (ok, nem sempre de forma tão direta) do invisível (“A Dama na Água”, “A Vila”, “Fragmentado”, por meio da personagem de Anya Taylor-Joy); o universo infantil é composto pela pureza daqueles que creem sem duvidar (“O Sexto Sentido”, “Corpo Fechado”, “Sinais”, por fim até o tão massacrado “O Último Mestre do Ar”); já os elementos da ordem do fantástico sempre surgem como aparições que desestabilizam as estruturas de poder e, com isso, gerenciam o universo e os afetos (“Corpo Fechado”, “Sinais”, “A Vila”, “A Dama na Água”, “Fim dos Tempos”, “Fragmentado”, “Vidro” – este último, por sua vez, soa como um interessante comentário sobre a indústria do entretenimento e sobre a super-heroização do cinema que marcou o mercado audiovisual nos últimos anos). Tendo todos esses aspectos – e até mais, isso não é tudo claro (creio que poderia render textos e mais textos e sequer arranharia a superfície da obra de Shyamalan) como norteadores de sua arte, podemos focar, nessa imersão, em trafegar pela filmografia de M. Night Shyamalan, de um cinema riquíssimo que promove discussões riquíssimas, diálogos e análises com finalidade de investigar o que há de mais complexo e intangível em nossa ordem mundana. E eis que, nisso, só então, conseguimos identificar o que há de tão transformador e reflexivo em sua obra e o porquê de isso ser um grande desafio dela se dar na dinâmica do âmbito restrito dos maiores estúdios da indústria do cinema.
Os discursos da série até funcionam muito bem como uma espécie de crise tanto para o universo shyamalaniano (o tema da fé que é questionado, a indefinição sobre a real dimensão fantástica de tudo o que vimos nos seus filmes anteriores) como um comentário indireto sobre religião e o gênero dos filmes de terror fantástico e suspense (existe até uma piada indireta com isso presente em sua unidade estilística).

Em “Servant” percebemos tudo isto: a reverência ao fantástico, a crença no místico como uma perspectiva de restauração pessoal a fim de examinar o luto (especialmente materno, já que Sean, se lida com isso, é, no mínimo, bem “peculiar”, digamos assim, para dizermos que seu modo de lidar com o luto é tão preocupante quanto de Dorothy? Ele foi conivente com a adoção do método de lidar com o simulacro por meio do boneco, sim, ok, mas até que ponto ele é cúmplice ou não mais uma vítima da paranoia da esposa?). Mas o que antes funcionava como uma nova percepção que desacomodaria a nossa leitura do universo proposto, repercute, agora, como um discurso que apenas reforça  o que sempre esteve claro no atravessar de seu cinema, por exemplo.
Claro, aqui ele tem sua forte parceria com Basgallop, com outra mente criativa, claro, “parceria”, e não exclusão ou sua hegemonia solitária, mas nem por isso, seu cinema ‘desperpassa’ em tudo o que ele faz.
Uma dinâmica na série, aliás, que pode funcionar muito bem para os já convertidos pela ‘igreja shyamalaniana’ (como brinco de dizer e confesso que eu até me coloco entre eles), mas, isoladamente, pode soar, para alguns, um tanto quanto brega.
Enquanto o início da série prega uma grande crise pela dor da perda, o seu estágio atual não passa de uma confirmação dos mesmos ideais sempre empregados. Teoricamente, nenhum problema nisso. Shyamalan, como grande contador de histórias, está sendo fiel ao próprio universo e vê necessidade muito mais de uma finalização que reafirme seus princípios do que uma redefinição daquele contexto. Ainda assim, tudo acontece de forma, a esta altura não tão inventiva.
Mas nem por isso menos interessante ou fascinante.

Afinal, ora, o que faz de uma obra merecedora de mínima atenção é a forma sobre como aborda o que aborda. E nem sempre precisa ser original. Claro, alguns clichês, por si só, não representam nenhum pecado quando bem empregados, pois, do contrário, obras seriam respeitadas única e exclusivamente pela pura originalidade. E sabemos que, na prática, isso não existe. Não é bem assim.
Até porque, dependendo do caso e de sua articulação no trato com a gramática artística em questão (seja ela cinematográfica ou seriada), clichês podem ser interessantes como elemento de linguagem.
E, sim, alguns dos clichês, creio, são de inevitáveis reproduções. E, por outras vezes, até somam em qualidade ao todo da obra, por mais incrível que pareça. Se bem empregados, vão além de meros lugares-comuns e que acabam ganhando reabordagens de repetições já tão pasteurizadas.
Se há uma coisa que podemos aprender com arte, quanto mais nos aprofundamos que o que torna certo artista singular é a forma como trabalha elementos já tão conhecidos e batidos e transformando-os em novidades estilizadas, mudando, assim, a roupagem.
Afinal, imaginemos uma obra de arte a partir da teoria do Paradoxo do Navio de Teseu.
Imagine que você tenha um barco inteiro de madeira.
Aí você vai lá, em meio a uma de suas viagens marítimas e troca uma das tábuas dele por outra, de alumínio. O barco ainda é o mesmo, só que agora, tem um pedaço de alumínio. Agora vamos supor que você tenha gostado da ideia e vá substituindo toda a madeira por alumínio, parte por parte. Troca o convés, troca os mastros, troca o timão, troca o leme, etc.
Ao final dessa reforma você terá um barco de alumínio e não é mais um de madeira. Logo o barco é o mesmo? Ora, não! Isso mesmo, não. Ou seja, você terá outro barco. Mas quando foi que o barco de madeira deixou de ser o de madeira e virou o de alumínio? Foi na última peça que você trocou? Ou foi na primeira? Ou talvez, logo depois que você passou da metade?

Com arte, há um processo de lógica parecido com este, dentro de suas internalidades, em suas organicidades íntimas, de acordo com o que o autor quer e ‘vai articulando’ (nesse gerundismo mesmo, usado aqui de modo proposital) sua obra.À medida que seu ator lapida seu trato com a linguagem da tal expressão artística em questão, vai construindo barcos e mais barcos. E a cada adereço acrescentado e/ou mudado, o barco já é outro de toda maneira.

Aliás, a ressaltar mais um ponto, é genial como a série consegue o diferencial pelo destaque em se sustentar em apenas uma única e simples localidade como central: a casa da família Turner e, nisso, explorar muito bem sua limitada geografia, num cenário só (majoritariamente, claro! Não que a série não tenha mostrado, mesmo que de relance, outros lugares, até porque seria impossível – sim, IMPOSSÍVEL! – desenvolver sua trama sem ao menos deixar claro a extensão desses outros lugares), porque tudo gira em torno da realidade hermética ali. E digo isso porque os melhores filmes de horror, se formos parar para pensar friamente, investem tempo na construção de atmosfera, especialmente aqueles que, como Servant, se passam em apenas uma localização. É assim com clássicos como “O Iluminado” de Kubrick e como “O Exorcista” de Friedkin, e é assim também com obras recentes como desde “Os Estranhos”, de 2008, filme de terror de invasão domiciliar com a Liv Tyler, até os recentes “Boa Noite, Mamãe”, “Nós” e “O Chalé” e “O Que Ficou Para Trás”. Mas com isso não pretendo convidar você, caro leitor, a comparações entre a série e os filmes citados para além desse aspecto específico, ou seja, o cuidado com o estabelecimento da ambientação em longas de horror e o quanto eles “ocupam de espaço” na duração da obra. Talvez “Servant” até vá um passo além nisso, não demonstrando a menor vontade de trazer grandes revelações ou reviravoltas a todo momento ou preencher a tela com horror gráfico, com tripas e sangue (aliás, nesse quesito, a série fica restrita às entranhas dos bichos cozinhados, “vítimas” da cozinha de Sean, com o ganso sendo o animal da vez mais ao fim da série), mas, se o espectador chegou até aqui, quer dizer que já está no mínimo acostumado com os incrementos tímidos, mas belos que cada episódio traz.


A segunda temporada, disponível desde o início deste ano, tendo estreado juntamente com “WandaVision”, série da Marvel, lá atrás, potencializa tudo que foi apresentado nos episódios de estreia – e mesmo que o próprio Shyamalan não dirija tudo mesmo, a atmosfera se mantém fortemente presente no mesmo tom até o fim. O formato de streaming, com capítulos de 24 minutos, funciona tão bem quanto a fotografia soturna e claustrofóbica. O mesmo serve para a gastronomia como elemento narrativo – algo que discuti ao início deste texto -, posta não só como consequência das maldições que assolam a família, como personagem ativo e essencial na relação dos Turner.
A bem da verdade, tudo aqui sempre foi sobre clima e atmosfera e, claro, de bizarrices variadas, muitas delas relacionadas com comida. Mas eis que no derradeiro episódio da segunda temporada, dirigido e escrito por Ishana Night Shyamalan – sim, a filha dele, portanto, olha o nepotismo do célebre produtor executivo aí, de novo! -, somos brindados com um típico terrorzão à moda antiga de casa assombrada com direito até a alguns pontuais jump scares e uma natureza interessantíssima de slasher. O resultado? Uma diversão só.


Em suma, a série parece um campo de experimentos e referências que Basgallop e Shyamalan usam para testar este seu mais recente jeito de fazer suspense. E tudo funciona aqui. A inquietante estranheza é imediata, mas ao mesmo tempo o envolvimento com os personagens cresce em cada episódio e o desejo por desvendar o mistério também – de quebra, toda a parte gastronômica encanta e agradará muito bem quem aprecia comida e ir para a cozinha no fazer desta fina arte.
Bem, é mesmo um grande motivo para assinar o Apple TV Plus? Ora, se você gostou deste texto, ficou curioso e cativado e ainda curte Shyamalan, eu dou esta cartada e diria que é mais do que obrigatório.
Ponto.


Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐ (para as duas temporadas)

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