Oscar 2022 | ‘King Richard – Criando Campeãs’: em fiel performance, Will Smith encarna pai de Serena e Venus Williams rumo à ‘A-list’ do tênis


“As pessoas entenderam a história errada ou a mídia retratou meu pai sob uma luz falsa. Queremos contar essa história certa”, é o que diz Serena Williams [considerada uma das melhores e mais vitoriosas tenistas da história do esporte por especialistas e público em geral] sobre o filme que retrata os esforços de seu pai em fazer dela e de sua irmã as maiores tenistas do mundo. O drama biográfico foi o responsável por conceder no último domingo o primeiro Globo de Ouro à Will Smith.


Das mal cuidadas quadras públicas frequentadas por traficantes nos parques da periferia de Michigan em suas infâncias rumo a ascensão histórica nos campeonatos de tênis superlotados. Estamos falando de títulos de Grand Slam, torneio de Wimbledon, primeiras posições do atletismo universal e a vasta coleção de taças que hoje elas guardam em prateleiras de muitas divisórias. Essa foi uma realidade que os americanos dos anos 90 não poderiam prever, os quais se surpreenderam com o desempenho recorde e quase indestrutível das irmãs afro-americanas Serena e Venus Williams, mas totalmente prevista pelo pai delas. Neste meio termo, entre uma realidade e outra — a pobreza e o sucesso — houve muito esforço, planejamento e persistência, por parte das irmãs Williams (com toda certeza), mas ainda mais por parte do senhor Richard Williams, que pensou, ambicionou e roteirizou toda a carreira de suas duas caçulas antes mesmo de seus nascimentos.

King Richard‘ é um drama biográfico que acompanha os incomparáveis esforços dos pais de Serena (interpretada por Demi Singleton) e Venus (interpretada por Saniyya Sidney) no propósito de criar as maiores tenistas do mundo desde bem cedo. Quando digo “bem cedo”, é realmente BEM cedo mesmo. Richard Williams (Will Smith) e Oracene ‘Brandy’ Williams (Aunjanue Ellis) projetaram um manifesto de 78 páginas delineando toda a trajetória profissional das futuras prodígios do tênis americano e como as treinariam para isso, um documento feito antes mesmo de as darem à luz, um fato que foi considerado por muitas pessoas próximas a família como uma ação insanamente narcisista, afinal, o sonho esportivo que abriria a ‘porta de saída’ da pobreza parecia pertencer muito mais aos pais do que as próprias filhas, pelo menos em seus primeiros anos de vida, antes de as meninas se apaixonarem pelo esporte e dividirem o mesmo sonho de seus pais, o que não demorou muito para acontecer. 

Segundo os créditos finais do filme, muito do que estava delineado neste manifesto veio a se concretizar, quase como uma profecia. No entanto, na época, Richard era considerado ‘um pobre louco sonhador’ e o plano era tido como um fracasso inevitável.

“É como pedir a alguém para acreditar que você tem os próximos dois Mozarts morando em sua casa”

Richard teve uma infância, para dizer o mínimo, muito problemática. Nascido em uma família de extrema pobreza com um pai pouco presente e sem uma figura adulta ao lado, para o proteger e o guiar, ele constantemente se via sozinho no mundo, fugindo dos ataques da Ku Klux Klan em Shreveport, Louisiana, e cuidando de si mesmo. Esses fatos de sua vida fazem o telespectador compreender suas preocupações e exigências em prol de um futuro melhor para suas cinco filhas, criadas até a adolescência em Compton, lugar que ele nomeia de “gueto Cinderellas”. 

“Richard Williams foi desrespeitado durante toda a vida, mas vocês não, vocês serão valorizadas!”

Quem assina a direção é o cineasta afro-latino Reinaldo Marcus Green (de ‘Monstros & Homens’, 2018). Reinaldo abrange a história do jeito que tinha de ser, ressaltando algumas atitudes questionáveis do protagonista e que foram amplamente disseminadas e criticadas pela mídia dos anos 90, mas sem se afastar do ponto central da obra: a persistência, preocupação e cuidado de um pai presente e extremamente ambicioso acerca do que espera para suas filhas; capaz de fazer tudo que possível para vê-las bem-sucedidas. Vemos esse cuidado expelido em mais de uma cena aqui; seja no momento em que ele protege sua filha mais velha das cantadas inapropriadas de um jovem bandido da comunidade, se colocando em um perigo eminente; quando ele enfatiza que o esporte e os treinos não podem atrapalhar o desempenho estudantil das garotas; ou ainda quando ele interrompe uma entrevista com perguntas invasivas à Venus. O próprio Will Smith se lembra de assistir essa entrevista, dizendo que o momento “ficou gravado em meu coração”, o que só facilitou ainda mais seu desempenho no longa: “O olhar de Venus quando ele interrompeu a entrevista (…) essa imagem me marcou, porque é assim que eu queria que a expressão da minha filha ficasse quando ela me visse defendê-la“, disse o ator em uma coletiva de imprensa online. Inclusive, a expressão da jovem atriz — Saniyya Sidnei — que interpreta Venus com maestria no filme [considerada pela W Magazine como uma das melhores performances da temporada de premiações deste ano], foi realmente similar ao da Venus que vemos na entrevista original, sem contar com a assustadora semelhança do ator escolhido para ser o entrevistador com o jornalista da vida real; escolhas de elenco apreciáveis.

Com algumas rugas extras, cabelo grisalho e olheiras profundas (sinais da jornada dupla do personagem, que treinava suas filhas durante o dia e trabalhava à noite como segurança), Will se transforma e incorpora Richard com total perfeição e honestidade, adicionando à sua interpretação maneirismos [inclusive o andar, com o dorso levemente curvado] e uma entonação de fala idênticos ao do real Richard, uma evolução de performance que Smith diz vir de sua proximidade com a *escrita. É possível sentir em seus monólogos e expressões as discordantes sensações e as fases pelo qual o protagonista passa nessa trajetória; ensejos de tristeza, exaustão, raiva, incapacidade, fé, alegria, arrependimentos, superação e evolução. 

Durante as gravações da produção, o ator separava algumas horas de seus dias para redigir seu recente livro autobiográfico “Will”, onde o astro compartilha alguns de seus traumas e inseguranças como esposo, pai e filho, além de momentos marcantes em sua vida pessoal e na carreira — tanto como ator, quanto como músico — dividindo conosco um pouco de seu processo de saúde mental e física no decorrer dos últimos anos.


A desigualdade racial no tênis também é um ponto central na trama. Em uma conversa que Richard tem com uma dupla de agentes esportivos que demonstram forte interesse em representar Venus, os dois homens brancos repetem a palavra “incrível” vezes demais, referindo-se ao desempenho esportivo da menina, o que foi imediatamente interpretado pelo pai da garota como uma expressão racista maquiada de elogio, afinal, eles dificilmente achariam tão “incrível” os mesmos resultados se viessem de uma menina branca da elite americana. Ao questionar os agentes sobre essa atitude, Richard destaca que foi exatamente este motivo — a falta de diversidade racial e principalmente a falta de mulheres negras no esporte — que o fez escolher especificamente o tênis para treinar suas filhas. Neste ponto da história, percebemos que Richard planejou tudo isso não apenas em busca do sucesso financeiro às suas caçulas e à sua família no todo, mas também o fez desejando que elas fossem símbolos de esperança para toda a comunidade negra e periférica, mostrando que o lugar dessas pessoas não é só na favela e nos guetos, mas sim onde desejarem estar. 

“Esse próximo passo que você vai dar já ia ser difícil para qualquer um, mas para você… você não vai estar representando só você, estará representando cada garotinha negra em todo o mundo e é você que vai ter que quebrar essa barreira […]”

As cenas de Aunjanue Ellis (de ‘Lovecraft Country’, 2020, e ‘Com a Cor e a Coragem’, 2002), principalmente nas que a atriz divide tela com Smith, são tocantes, envolventes e firmes. A atriz consegue transmitir a bravura de Oracene. Nós pouco ouvimos falar dela até agora, mas Oracene Williams teve grande protagonismo nessa rota profissional de suas filhas, principalmente a da Serena, que treinava e se capacitava com a mãe nos bastidores, enquanto neste meio-tempo boa parte da atenção de seu pai era para Venus, que estava na mira da mídia constantemente. Como dito anteriormente, Richard tem uma personalidade que encanta em vários momentos, mas que também decepciona em outros muitos, seu orgulho excessivo é um destes e uma das falas de Oracene é a que mais expele essa característica irritante de seu esposo: “Richard, você acha que fez tudo isso sozinho? […] Você não é o único sonhador da família. Não teria sonho nenhum se não fosse por mim. Eu carreguei elas dentro de mim e nas minhas costas e carreguei você também, trabalhando em dois turnos para poder colocar comida na sua mesa…”.

O roteiro por Zach Baylin foge da construção típica, até mesmo clichê, de filmes esportivos, que normalmente seguem uma reta previsível onde primeiramente nos apresentam os personagens, logo em seguida inserem um aglomerado de dificuldades e então, quase como em um conto de fadas, produzem um fechamento de pura êxtase, marcado por um grande evento esportivo com a já aguardada vitória que traz o definitivo sucesso do atleta. Essa ilusão, por demais forçada, não acontece aqui.  É claro que percebemos certos pontos típicos desse macete ou checklist na trama, mas Baylin foge de muito dessa receita e constrói o enredo com total liberdade de explorar a história de modo honesto e muito próprio. Vemos em ‘King Richard’ o ‘sobe e desce’ da vida, a ‘montanha-russa’ que encaramos nela e esse sentimento de que nunca temos total convicção do que acontecerá no próximo ‘set’ e que, a qualquer momento, o vento pode começar a bater ao contrário. Talvez o ponto que mais se diferencie em ‘King Richard’ de outros filmes sobre atletas consagrados, seja o fato de que não vemos aqui um talento instintivo ou nato; Serena e Venus não nasceram ou foram simplesmente descobertas como boas tenistas, elas foram treinadas desde o início neste propósito — bem naquele estilo teoria lavoisiana; “nada se cria, tudo se transforma” — o que sugere à nós que qualquer um conseguiria fazer o mesmo com um bom punhado de esforço e ambição.

Há muito extremismo nos treinos de Richard, praticando em quadras perigosas — seja encharcados pela chuva ou expostos às altas temperaturas do sol — todos os dias, mas há algo nele que o diferencia de outras personalidades paternas obsessivas que predestinam toda a carreira dos filhos. Existe também esse seu lado protetor e carinhoso, preocupado com até mesmo o fato de suas filhas focarem tanto no esporte ao ponto de não vivenciar plenamente a infância, o que o faz tirá-las dos campeonatos juvenis por alguns anos após descobrir que a então célebre tenista Jennifer Capriati (que tinha quebrado todos os tipos de recorde do tênis até aquele momento) havia sido presa com maconha em um quarto de hotel na Flórida. Ele não queria o mesmo desfecho para suas filhas, ele não queria que o esporte se tornasse uma pressão tão forte que as fizessem procurar alívio em outro lugar. Richard só desejava uma coisa para elas: “se divirtam no jogo”.

Há uma similaridade facilmente percebida entre a família Williams e a Smith. Enquanto Jaden e Willow, em suas respectivas carreiras musicais de sucesso [mas que também passaram por altos e baixos], foram desde o início apoiados pelo pai à assumirem sua voz no mundo, representando a comunidade negra quase como uma continuação do legado de quem construiu sua carreira à partir de “Um Maluco no Pedaço”, Serena e Venus fazem o mesmo, encontrando no pai até hoje a motivação e energia para seguirem os sonhos que nasceram nele, mas que agora pertencem à elas.

‘King Richard: Criando Campeãs’ faz parte da estratégia de lançamento híbrido da Warner Bros. com HBO Max, tendo sido lançado na plataforma e nos cinemas em dezembro do ano passado. O longa é uma das produções mais alavancadas pelos críticos e público ao Oscar 2022. O filme ganhou o Prêmio AFI como ‘melhor filme do ano’, concedeu o Globo de Ouro na categoria ‘melhor ator em filme dramático’ para Will Smith (que competia ao lado de grandes nomes de hollywood como Denzel Washington, Mahershala Ali e Benedict Cumberbatch), além de ter sido amplamente nomeado nessa semana ao SAG Awards 2022.


Nossa Classificação:

Avaliação: 5 de 5.

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